segunda-feira, 21 de junho de 2010

Pintura

O sol, que olhava curiosamente este canto, já se tinha passeado por vários pontos da sala durante esta longa e curiosa observação. Já o prato abandonado ao jantar do dia anterior, uma argamassa de risolis e arroz, cujos restos ainda boiavam nas bordas, estava banhado em água no lava-louça e o telefone, afônico pelo toque ininterruptamente negligenciado, na minha cabeça ele liga, mas infelizmente não, ou liga, eu com todo meu fracasso não atendo, na mente absorvida, se fundido com a música de fundo.
Traçou um novo rosto, que se sentava ao lado do primeiro e delineou a luz do pelo de um animal (onça) abandonado no canto do quadro. Depois, afundou a cabeça nas mãos preenchidas de tinta, foi à cozinha, encheu um novo prato, comeu a mesma ementa que comera nas últimas noites e que preparara cuidadosamente uma semana antes, e voltou a sentar-se no banco frágil.

domingo, 20 de junho de 2010

Contigo, tenho dias. Dias, em que a habitual indiferença quanto às andanças do teu destino dá lugar a uma precisão urgente, como uma sede de náufrago ou um desejo de grávida. Tenho dias, contigo. Em que és o Sexo e a Palavra, o sítio onde trabalho, a casa onde vivo, o ar que respiro. Em que és o roncar abafado da máquina de café, o correr da chuva no terraço do prédio, a humidade empreguinada da minha rua, refletida no portão de alumínio. Pequenas coisas te desapontam, pode ser o cheiro de outro homem, a declinação de um som ou o teu nome abreviado nos contatos do celular. Pequenas coisas, mas nem por isso aprendi ainda a identificar os sinais: quando você chega, já vou tarde. E então fico quieta, a espera, enquanto passas por mim, ocioso, como um domingo, um passeio dos tristes, uma ida ao supermercado. Contigo tenho apenas dias.

sábado, 19 de junho de 2010

Tolo

Nunca me deixaram antes, sabe? Fui eu sempre que fugi, trancava a porta, adeus e já vai tarde. Nunca me esqueceram primeiro nem nunca amei quem não me amou. Não é presunção, é questão de me fazer todo o sentido: o Amor é um encontro de vontades no espaço sideral, é um nó que flutua, solto, mas que não se desfaz enquanto as duas pontas não se desentrelaçarem simultaneamente. Como poderia te amar se tu não me amasses de volta? Como poderia te amar sem conhecer, compreender e aceitar os termos do teu Amor? Se apenas eu te quisesse, o meu querer seria a ponta solta de um cabo elétrico a deriva numa poça de água, sem rumo, apenas à procura de fazer doer a alguém. Por isso acho estranho, continuar a chorar às escondidas por ti, quando, supostamente e de acordo com todas as regras do bom senso e da boa vida, tu já nem te lembras que existo. Que sentido faria, me encolher de joelhos como uma neta pelos mais velhos e me remeter, triste,as mãos entre o rosto, para o canto do recreio, se tu não recorda mais os traços que me compõem o rosto? Seguro de que não te amaria, se não viesse igualmente ao meu encontro, se não corresse algures na minha direção. Nunca poderia ter continuado a te dar colo, se me tivesse virado as costas, nunca poderia te amar de costas, o teu encolher de ombros, esse gingar de ancas desacauteladas. Não entendes? Tens de estar a minha volta, a me rondar a teimosia, para que eu ainda me lembre de ti. Tens de, por vezes (só por vezes, é o que basta), dormir comigo e de me fingires tua companhia ao almoço, para eu ainda te ter tanto carinho. Tenho de continuar presente na vontade das tuas mãos, na ponta dos teus dedos. Se eu ainda te amo é porque nos encontramos com frequência a meio caminho um do outro, sobre um lago gelado,um campo de trigo, uma estrada deserta. Ou no reflexo de uma garrafa de café, na rua da cidade morta.
Voltaste e és o mesmo, mas também outro. Te reconheço pelo valsar do sorriso rasteiro, os mesmos vales obscuros onde mergulham umas olheiras azuis, e talvez uma ou outra ruga a mais. Mas és outro. Como se num filme de extra-terrestres, forças alienígenas atravessassem o teu olhar meio vazio, que sinto dominado por outros mundos. Ou se calhar sou só eu, mais distorcida, magoada, engelhada, chacoalhada, que quero cantar-te o regresso mas não consigo. Que quero anunciar-me na tua pele com pompa e circunstância mas me falha o entusiasmo. Nos amamos com os mesmos gestos gentis que nos arrebataram, é certo, e tu contina a pôr o cabelo para trás da orelha quando me sento perto de ti, de frente, as pernas abertas, o meu rosto inseguro abandonado ao teu hálito. Mas quem és, afinal? Um estranho de três olhos, braços no lugar de pernas, cabeça nos pés, como um quadro abstrato. Uma vogal arrependida dos sons abertos que me rasgavam a carne e me abatia, em tempos. Na pior das hipóteses mudamos os dois, e hoje somos apenas estranhos que se espreguiçam no conforto de fingirem que ainda se querem. Não devemos insistir nos rituais que nos eram familiares, sabe? Nem nos gestos habituais que não reconhecemos que acabaram se virando contra nós. Não me importo que venhas diferente, encalhando, hoje até me ama mais e sempre me podes mostrar o que entretanto aprendeste, mas não suporto que repita a coreografia do amor de antes, convencido de que o mimetismo do que fomos nos poderá salvar de não sermos felizes.